De Cratará para o mundo: “Cangaço Novo”, série brasileira filmada no Nordeste – com muito sotaque potiguar em destaque – foi lançada há pouco mais de 15 dias e já é um sucesso global. A produção é uma das mais assistidas de sua plataforma de streaming, a Amazon Prime Video, liderando o ranking de views em 49 países. Cratará, a cidade cearense onde a trama se passa, não existe, mas o sertão nordestino mostrado por ela é real e capaz de gerar identificação com as mais variadas nacionalidades. 

A série dirigida por Fábio Mendonça e Aly Muritiba traz ação, violência e drama para as paisagens áridas do interior nordestino. Uma combinação que a colocou no Top 10 das produções mais assistidas da Prime Video em 24 países da África, incluindo Angola, Moçambique, e até a Costa do Marfim, onde não se fala português. Emplacou também em 13 países da América Latina, nove na Ásia, e mais Portugal, Canadá, e Papua-Nova Guiné. Os dados foram compilados pelo site FlixPatrol.

“Cangaço Novo” conta a história de Ubaldo (Allan Souza Lima), um bancário da zona urbana de São Paulo sem nenhuma lembrança de sua infância. Ele descobre que tem uma herança e duas irmãs no sertão cearense: Dilvânia (Thainá  Duarte) lidera um grupo que adora seu famoso pai falecido; e Dinorah (Alice Carvalho), que é a única mulher em uma gangue de ladrões de banco.

Ubaldo chega à cidade, passa a ser cultuado pela forte semelhança com o pai, e é chamado a cumprir seu destino como o novo mítico “cangaceiro” e líder supremo da gangue. O bancário terá que enfrentar bandidos, assassinos, policiais corruptos e, literalmente, explodir pequenas cidades enquanto embarca em sua jornada, tentando desesperadamente manter seus valores morais sob controle.

A série foi filmada entre 2021 e 2022, com cenas em Cabaceiras, na Paraíba, e Parelhas e Carnaúba dos Dantas, no Rio Grande do Norte. “Cangaço Novo pra mim é de uma qualidade inovadora, tanto para o gênero ação feito no Brasil, quando para o audiovisual nordestino. É diferente de tudo que já fizemos antes”, declarou Alice Carvalho, na ocasião do lançamento, no último dia 18 de agosto. 

Pegada sertaneja

Para viver uma mulher cheia de garra e disposta a lutar para pegar o que deseja “na raça”, Alice passou por toda uma preparação – que incluiu hipismo, tiro, direção de precisão, luta, e uma severa transformação física. Tudo para deixar a personagem moldada para o projeto. “O roteiro é centrado nos conflitos familiares e numa família que é essencialmente matriarcal. Todas as sequencias de tiroteios e lutas são motivadas por personagens femininas fortes”, disse. 

A atriz destacou que, diferente da grande maioria dos filmes de ação, as personagens femininas de “Cangaço Novo” não ficam na sombra dos homens. “É uma história que também traz o público feminino para perto. Porque essas produções no geral têm um tom machista, que não dão às mulheres um poder definidor nas tramas. Mas essa é diferente”, ressaltou.

Outro ponto que a atriz considerou forte na série é o cenário. Segundo Alice, as paisagens impressionam não só pela beleza, mas também por mostrar um sertão nordestino diferente do habitual exibido em novelas e filmes. “Foi escolhido um sertão pedregoso, aquele que fica no Cariri paraibano, no Lajedo do Pai Mateus, e também no Seridó potiguar. Até nisso a série será inovadora”. 

O RN está bem representado nas cenas da série, não apenas em alguns cenários, mas também no elenco. Alice contracenou com conterrâneos como Robson Medeiros (de “A invenção do Nordeste”) e Ênio Cavalcante (o ator mais presente no audiovisual local), além de César Ferrario, Titina Medeiros, e Múcia Teixeira, entre outros. “Quando gravei a primeira vez com a Titina, bateu aquela emoção. Os olhos encheram de água, lembramos de nossas vivências e trajetórias até ali.  Foi especial”, declarou.  

Inspirações potiguares

Além dos artistas potiguares no elenco, “Cangaço Novo” tem algo a mais do RN em sua concepção. Em uma entrevista recente no canal do crítico Pablo Vilaça, os roteiristas da série admitiram que a história do assaltante potiguar de bancos José Valdetário Benevides (1959-2003) foi uma fonte de inspiração para a trama. E boa parte desse conteúdo estava no livro “Valdetário Carneiro: A essência da bala”, dos jornalistas natalenses Paulo Nascimento e Rafael Barbosa, lançado em 2013. 

Na live, o roteirista Eduardo Melo contou que conheceu o livro em 2017, durante uma consultoria, e ficou fascinado pela história. No ano seguinte, levou o livro para os outros roteiristas lerem em conjunto, “com o cuidado de não copiar nada”, assegurou. “Mesmo porque a história de Valdetário é no passado, e a nossa é nos dias de hoje. Mas o livro é uma referência, sim. Ele traz brilhos que se refletem um pouco na série”, disse. Mariana Bardan, outra roteirista, ressaltou que o livro mostra que a realidade é muito mais impressionante que a ficção. 

Novos cangaços 

O sucesso de “Cangaço Novo” prova o potencial que uma temática tão atrelada ao Nordeste possui. A cena do cangaço nordestino, cujas ações remontam ao Brasil colonial (vide o “Cabeleira”, de Pernambuco) e tiveram seu auge no começo do século XX, com Lampião e seu bando, é fonte de inspiração para o cinema, televisão e literatura há bastante tempo. 

A mitologia em torno do cangaço e suas aventuras fez o crítico potiguar Salvyano Cavalcanti de Paiva criar o termo “nordestern”, em 1950, uma referência aos filmes de faroeste norte-americanos (e italianos). Em fevereiro de 2023 foi realizada em São Paulo a “Mostra Nordestern: Bangue-Bangue à Brasileira”, com 16 longas, curtas e documentários que usaram os anti-heróis nordestinos como personagens – e em varias épocas. 

A mostra exibiu clássicos como o documentário “Lampião”, de 1936, filmado in loco pelo mascate Benjamin Abrahão; “O Cangaceiro” (1953), de Lima Barreto, que inspirou o termo “nordestern”, até títulos contemporâneos como  “Sertânia”; o documentário “Os Últimos Cangaceiros”, do cearense Wolney Oliveira; “Canta Maria”, do paulista Francisco Ramalho Jr.; “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, clássico de Glauber Rocha, e também “Bacurau”, sucesso nacional de bilheteria em 2019, por Kleber Mendonça Filho. 

As plataformas de streaming parecem estar cada vez mais dispostas a explorar a nova cara do fenômeno. A Netflix lançou no ano passado a comédia “O cangaceiro do futuro”, série criada pelo cearense Halder Gomes. Já a Star+ está gravando “Maria Bonita”, série com foco na histórica companheira de Lampião. A rainha do cangaço será vivida por Ísis Valverde, e Lampião por Júlio Andrade – escolhas que já estão levantando polêmicas. O cangaço se reinventa e se mostra de várias formas. 

Fonte: Tribuna do Norte

Foto: Divulgação