Números divulgados pelo Ministério da Cultura mostram que o governo Lula aprovou, ao todo, uma verba recorde de R$ 16,3 bilhões para projetos culturais por meio da Lei Rouanet em 2023. Só neste ano, foram aprovados 10,6 mil projetos distribuídos entre sete segmentos culturais: artes cênicas, artes visuais, audiovisual, humanidades, museu e memória, música e patrimônio cultural.

Nas redes sociais, a notícia sobre o recorde fez bolsonaristas iniciarem uma enxurrada de publicações com desinformação sobre o assunto. Um artigo de agosto de 2022, escrito por Nichollas Alem, fundador e presidente do Instituto de Direito, Economia Criativa e Artes (IDEA), e publicado no Monitor Mercantil, desmente os sete principais mitos espalhados pela extrema-direita sobre o assunto. Leia:

A Lei Rouanet é uma invenção do PT ou da esquerda?
Pelo contrário, a Lei Rouanet está mais próxima do espectro político da direita. Durante o Governo Collor, o Ministério da Cultura e outras entidades que atuavam na área foram fechados. Tratou-se de um movimento neoliberal de diminuição da participação do Estado no campo da cultura. Em contrapartida a esta desestruturação das políticas vigentes, foi criado o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) pela Lei 8.313/91, a famosa Lei Rouanet.

Um dos instrumentos que a Rouanet trouxe é um incentivo fiscal para patrocinadores e doadores de projetos culturais. A proposta é estimular que o mercado participe mais no financiamento da cultura – diminuindo o protagonismo do Estado. Por esse motivo, podemos dizer que a Lei 8.313/91 foi idealizada mais em uma perspectiva de direita (liberal) do que de esquerda.

A Lei Rouanet dá dinheiro para artistas?
Errado! A Lei Rouanet prevê três instrumentos de financiamento: Fundo Nacional da Cultura (FNC); Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficart); e o mecenato. Normalmente, quando lemos alguma notícia no jornal ou escutamos críticas sobre a Rouanet, estão tratando especificamente desta última modalidade, ou seja, o mecenato. E como ele funciona?

Pessoas, empresas e entidades sem fins lucrativos (como muitos museus, por exemplo) podem apresentar um projeto cultural na Secretaria Especial de Cultura. Esse órgão vai fazer uma análise de viabilidade técnica e orçamentária do projeto. Basicamente, o Poder Público quer saber se a proposta tem coerência, se “para de pé” e se está de acordo com as finalidades da legislação. Se tudo estiver certinho, a Secretaria autoriza a captação de recursos no mercado/na sociedade.

Assim, o idealizador do projeto cultural vai procurar patrocinadores e doadores. Os apoiadores desses projetos culturais aprovados poderão utilizar um inventivo fiscal proporcional ao valor patrocinado/doado, além de outros benefícios como exposição da marca, ingressos para eventos, dentre outras, a depender do caso.

O responsável pelo projeto precisa gastar o dinheiro captado de acordo com o orçamento aprovado pela Secretaria. A legislação prevê inclusive certos limites para cada rubrica (cada linha do orçamento), de modo que não é possível pegar todo dinheiro e gastar com apenas um favorecido/um artista. Portanto, no mecenato da Lei Rouanet, não é o Estado que dá dinheiro diretamente aos artistas. Do ponto de vista técnico, chamamos estes recursos de gasto público indireto, justamente porque são decorrentes de incentivos fiscais.

A Lei Rouanet tira recursos da saúde, educação etc.?
Não exatamente. Como explicamos acima, o mecenato na Lei Rouanet funciona com incentivos fiscais. O Estado deixa de arrecadar com tributos (no caso, o Imposto de Renda) para fomentar determinado setor. Nesse sentido, abre-se mão de uma receita que não necessariamente iria para uma área como saúde ou educação. Além disso, devemos ressaltar que a cultura sempre recebeu participações minúsculas do orçamento federal. Para se ter uma ideia, a Receita Federal estimou que os gastos tributários com a Lei Rouanet (ou seja, o que o Estado deixaria de arrecadar com o imposto) representavam apenas 0,51% do total de renúncias fiscais para 2019.

Bolsonaro acabou com a Lei Rouanet?
Não. A Lei Rouanet continua vigente. Do ponto de vista legal, durante a sua gestão foram feitas duas atualizações importantes: a Instrução Normativa 2/2019 e o Decreto 10.755/21. Este último será objeto de análise de constitucionalidade por trazer algumas mudanças questionáveis no programa. Porém, um ponto importante a ser observado está no histórico captação de recursos. Mais precisamente, a captação na Rouanet continuou subindo, inclusive, em níveis mais elevados do que na era do governo petista.

O Governo pode escolher não aprovar projetos de inimigos políticos ou críticos?
Não pode. Realmente, há relatos de perseguição ideológica e sucateamento da administração na atual gestão. Porém, a própria Lei Rouanet prevê o seguinte: “Art. 39. Constitui crime, punível com a reclusão de dois a seis meses e multa de vinte por cento do valor do projeto, qualquer discriminação de natureza política que atente contra a liberdade de expressão, de atividade intelectual e artística, de consciência ou crença, no andamento dos projetos a que se refere esta Lei.”

Para quem acha que, realmente, “fulano” ou “beltrano” não deveria receber, basta refletir que governos mudam. Logo, um instrumento de fomento à cultura não pode estar sujeito às visões subjetivas da administração pública. Por esse motivo, é muito importante aprimorar e fortalecer as instâncias democráticas e independentes de avaliação de projetos dentro do Programa.

Os artistas desviam recursos da Lei Rouanet?
Não! A Lei Rouanet é uma das políticas baseadas em incentivos fiscais mais transparentes. Isso acontece porque o proponente (o idealizador ou “dono” do projeto) precisa gastar os recursos de acordo com o orçamento aprovado pela Secretaria. No final do prazo de execução, ele precisa prestar contas e enviar os comprovantes de que gastou corretamente os recursos. É claro que existem desvios, como qualquer outra política ou iniciativa – seja ela pública ou privada – mas isso é uma pequena parcela dos milhares de projetos culturais apoiados na Rouanet.

Os recursos vão para quem merece?
Essa é uma boa discussão. A Lei Rouanet não foi pensada para que os projetos culturais fossem filtrados/reprovados com base em critérios como “o artista ser famoso” ou “o projeto ter capacidade de se financiar sozinho“. Desse modo, qualquer proposta que se enquadre dentro de requisitos legais mais objetivos de viabilidade técnica e orçamentária (potencialmente) pode ser aprovada. Caberá ao mercado, na condição de patrocinador/doador, decidir “quem merece ou não” receber este apoio.

Isso realmente gera algumas distorções, por exemplo, a concentração da captação de recursos em certos segmentos artísticos e regiões do Brasil como o Sudeste. Aliás, o próprio governo estuda medidas para tentar enfrentar o assunto. Essa questão envolve uma discussão muito mais estrutural do Programa. Devemos refletir se o problema está nele ou na ausência de outros mecanismos que possam balancear essas distorções.

Fonte: Blog do Silvério Filho